Vida, written by Sentimentalismo poético at Spillwords.com

Vida

 written by: Sentimentalismo poético

@Sent_poetico

 

I

Estávamos todos aglomerados em volta do corpo pálido de um velho barbudo. Nada me animava. Nada me confortava. Mais uma coisa que foi embora.
“Vai ficar tudo bem” Disse João.
“Pouco importa. Essa merda é assim. Tudo acaba. E quanto mais importante para você, mais cedo acaba. ” Disse eu com lágrimas no olho.
“Quer um cigarro? ” Disse ele me mostrando o maço.
Peguei o cigarro e acendi. Nos afastamos do público. Eu, João e Hobs. Todos arrasados. Mas eu era o mais. Não aguentava mais isso. Viver. Era muito ruim. Tudo acabava e o que me restava era eu. E isso não é o bastante. O sofrimento da morte era ruim demais para ser algo natural.
“É a sua vez. Você vai ler o poema? ” Disse Dona Rose.
“Sim. Estou indo”. Me dirigi ao centro das pessoas onde estavam sendo ditas as últimas palavras para o velho que se foi.
“Tempo

Lembra?
De quando tudo era bom
tudo era simples.

tempos bons
que não podemos re-criar
nem reviver
apenas lembrar

o tempo passa
como o bonde cheio de pernas
levando tudo
avassalador

a dor
de ver
tudo que uma vez foi,
sendo
e não sendo mais

eu vou embora
mas prometo
voltar
então o tchau
fica para depois
favor
não me abandonar
Algumas pessoas estavam chorando, outras não. Não podia me importar se o poema foi impactante ou não. Não podia me importar. Não tinha forças para nada. Nada.
O funeral acabou e seguimos para casa.

 

II

A minha vida estava caindo aos pedaços. Meus pais estavam separados e meu avô estava morto. Meu avô era uma figura muito importante na minha vida. Ele era eu mais velho, e sempre o admirei muito. Quando ele morreu eu bebi uma orloff inteira e fumei um pacote de cigarros inteiro. Foda. Cheguei em casa da minha mãe caindo de bêbado e arrasado por tudo. Deitei e vomitei em minha cama e passei a noite toda ouvindo minha mãe chorar do meu quarto. Tudo estava dando errado.
Eu escrevia sobre tudo. Eu sentia que minha poesia estava melhorando e que podia ser publicado em pouco tempo. Não ia desistir de jeito nenhum. Minha rotina de escrita era normal. Chegava em casa, acendia um cigarro e ao som de ‘Sorority Noise’ eu escrevia por horas. Escrevia em torno de 20 poemas e um conto. Era algo natural. Saia de mim e eu só colocava no papel. Eu queria uma escrita brusca e seca. Nada de metáforas e babaquices. Queria algo que representasse a vida na prosa. Já na poesia eu pegava mais leve. Eu usava metáforas e figuras de linguagens simplesmente porque poesia não é prosa. E poesia precisa dessas coisas, em minha opinião (que pouco importa).
Um acontecimento me marcou muito. Eu, Hobs e João estávamos na Praça da Espanha. Eram 5 da manhã e nós estávamos todos um tanto quanto bêbados. Nós resolvemos andar até uma barraca de cachorro-quente para matar a fome. O sol já estava nascendo no horizonte e eu puxei um cigarro. Uma ambulância passou.
“Me passa um, cara” Disse João.
Passei o cigarro para ele.
Essa noite, ou melhor, dia, estava normal até agora. Todos nós estávamos ok. Decidimos esperar até 8 da manhã na casa do João para irmos apresentar os novos textos no ‘Café com Poesia’. Everaldo iria ter um ataque ao escutar os novos poemas. Então fomos todos à casa de João e ficamos bebendo cerveja até as 8. Estávamos devidamente bêbados para irmos ler poesia.
Na rua, comecei a recitar ‘O morcego’ de Augusto dos Anjos aos berros. Hobs e João começaram a rir e perturbar as pessoas que haviam acabado de acordar em um domingo nublado e não estavam nem um pouco com vontade de escutar poesia.
“Seus bêbados de merda! Vão para casa! ” Disse um velho no outro lado da rua
“Vai se fuder! Nós somos poetas! Se o senhor não gosta de poesia, você não gosta da vida!” Disse a ele olhando diretamente em seus olhos.
“Moleques! Vocês não sabem o que é poesia! ”
“Isso é Augusto dos Anjos, seu maluco! ” Falei a ele com meus punhos no ar.
“Para, cara! Não estou aguentando! ” Disse Hobs rindo.
“Vocês são malucos! Puta que pariu! Você xingou um idoso!” Disse João olhando para os dois.
“Ele precisava aprender o que é poesia” Disse eu, calmo.
Passamos 10 minutos andando sem se falar até chegarmos no ‘Café com poesia’.  Lá, estava tudo aberto normalmente. Mas algo estava estranho. Desde a noite anterior eu sentia isso. Então fomos cumprimentados por Maria, a garçonete do café. Ela não estava feliz como normalmente estaria, ela estava para baixo.
“Algo errado, Maria? Trouxe poesias novas e acho que você vai gostar”
Maria começou a chorar. Algo estava muito errado. Ela se apoiou em mim com os dois braços nos meus ombros.
“Ele morreu! ” Disse ela aos prantos.
“Quem? Que? ” Eu olhei para os dois que estavam tão confusos quanto eu.
“O Everaldo! Ontem, uma ambulância foi à sua casa e me ligaram do hospital! Ele teve um ataque cardíaco e morreu! ”
Eu o considerava o meu segundo pai. Puta merda! Isso era o que me faltava! Tudo dava errado! Tudo! Puta que pariu! Eu estava furioso. Quando meus pais se separaram e meu avô morreu, eu estava perdido. Não ia bem na escola e não conseguia nem escrever. Everaldo me acolheu, todo dia em seu café ele me ensinava sobre escrita e poesia. Tudo melhorou e estava um pouco melhor do que ruim. Mas agora tudo se foi. Eu estava destruído. Foi o a última gota.
“Em qual hospital ele está? ” Perguntei gritando. Estava desesperado e nem conseguia pensar.
“No Nossa senhora das Mercês…” Disse Maria cabisbaixa.
Saí correndo do café.
“Volta aqui, cara! ”
“É! Volta aqui! ” Diziam meus amigos. Mas eu não conseguia parar de correr.

 

III

Ele estava lá. Pálido. Morto. Sem vida. Tudo passou pela minha cabeça.  A vida, a morte, a poesia e o verme que era esse suposto Deus que me tira tudo que pode ser bom! Sentia a dor infinita de perder algo que nunca voltará. Sentia a dor.
Cheguei perto, ainda não acreditando ser verdade. Ele estava lá. Sem aquele calor que ele me proporcionava quando eu mais precisava. Chorando cheguei perto:
“Everaldo. Desculpa não ter dado tchau ou lido um último poema. Desculpa. ” Não aguentava falar sem a resposta de sua voz confortante.
Fiquei o que pareceram horas no quarto esperando com que ele acordasse. Mas o que obviamente não aconteceu.
“Senhor, o horário de visitas acabou”
Olhei para frente e estava uma enfermeira me olhando chorar.
“OK. Estou saindo” peguei minha mala e subi até o último andar do hospital. Não sabia se eu sequer podia fazer isso, mas o fiz de qualquer forma.
Lá em cima, sentei na beira do prédio e fiquei encarando o horizonte. A vida era fodida. Tudo ia embora e era complicado de lidar com isso. A vida era um cigarro que se apagava. A vida parecia infinita para nos sacanear. Puta merda! Tudo era tão ruim!
Acendi um cigarro. Refleti sobre tudo que vinha acontecendo na minha vida e resolvia algo. Por mais que eu quisesse, não iria me matar. Eu iria viver e transforar tudo em arte. Tudo. E algum dia eu iria morrer e alguém ia fazer arte com isso. Ou não. A ideia é o que importa.
“Ou moleque! Você não pode ficar ai! Está maluco? ” Um segurança estava atrás de mim, na porta.
“Desculpa. Vou sair. ”
Quando estava passando por ele, ele sentiu minha tristeza e decepção.
“Olha, garoto. Eu sei que é foda. Mas esse não é o melhor caminho. ” Ele me disse enquanto eu passava por baixo do seu braço que estava apoiado na porta.
Eu estava fora do hospital. Acendi meu cigarro. Meu celular começou a tocar e era Dona Rose.
“O funeral será amanhã. Everaldo sempre adorou seus poemas. Você poderia ler um para nós?”
Eu me senti realmente lisonjeado por esse pedido.
“Claro Dona Rose. Eu adoraria. Será em qual cemitério?”
“No das Lourdes”
Desliguei o celular e peguei meu caderno de poemas. Consegui escrever um poema rapidamente com tudo que estava sentido. Realmente entornei meus sentimentos no poema e comecei a chorar novamente pela perda. Eu o amava e ele se foi. Sei que algum dia todas essas perdas vão valer a pena. Talvez não hoje. Mas algum dia.
Segui em frente, pronto para ler meu poema no funeral do dia seguinte.

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