Rabiscos by Sentimentalismo poético at Spillwords.com

Rabiscos

Rabiscos

written by: Sentimentalismo poético

@Sent_poetico

 

I

O silêncio me matava. Era uma merda. Trabalhei 10 anos em silêncio. Eu trabalhava no museu de arte moderna de Nova York. Eu nunca entendi de arte moderna e contemporânea. Nada mesmo. Mas era um trabalho ok. Eu era monitor de sala. Eu vigiava as pessoas para ver se elas fariam algo errado, como chegar perto de mais da escultura de pênis por algum artista metido a besta. O silêncio. Era ensurdecedor, de deixar maluco. Ninguém falava nada, e se falassem eu tinha que pedir para baixarem o tom de voz. Não importa o quão alto eles estavam falando.

Um dia eu enlouqueci. Como podia alguém ficar tão quieto por tanto tempo? Como podiam esperar isso de alguém? Humanos não gostam de silêncio. Eu estava na sala 3. Era a exposição de algum artista americano que pintava quadros de bezerros crucificados. Os desenhos não pareciam bezerros, pareciam desenhos de criança. Era uma merda. Da Vinci rolava no túmulo. Ninguém falava nada. Apenas olhavam a “arte”. Eram garotos com seus alargadores ridículos e suas blusas longas com calças curtas demais. O que essa geração estava pensando? Queriam aparecer. Ser diferentes de seus pais, de seus avós. Ninguém falava nada. Aquele silêncio de dez anos entrava nos meus ouvidos e não saía. Ficava lá, me atormentando. Ninguém falava nada. Eu olhei pra os lados. Estavam os garotos lá. Estava perto demais do quadro.

‘Ei!’ Gritei.

Ele olhou para mim.

‘Você está perto demais do quadro! Não está vendo a placa?’ Falei aos berros. Todos os garotos da sala olharam para mim e eu olhei para eles.

‘Falem algo pelo amor de Deus! Ninguém fala nada! Que merda!’ Disse olhando para eles com minhas mãos para o céu.

‘Algum problema aqui?’ Meu chefe chegou na sala. Era um garoto de 30 anos. Eu já tinha meus 60 e tinha cansado desse trabalho. Não precisava disso. Desse silêncio.

‘Sim! Eles estão perto demais dos quadros! Ah! Aaaaah! Aaaaah!’ Eu gritava o mais alto que conseguia.

‘Vamos para minha sala por favor? Desculpe pelo transtorno meninos’ disse meu chefe.
Fomos à sua sala.

‘Por que estava gritando? O que foi isso? ’ Me perguntou sentado.

‘Eu cansei Carl. Chega dessa porra. Esses quadros são uma merda. ESSE SILÊNCIO É UMA MERDA! ’ Respondi.

Não aguentava mais nada.

‘Eu sei. Eu era assim. Tudo aqui é foda. Você não é pago para interpretar a arte. Você é pago para vigiá-la. ’

‘Eu sei, Carl. Eu sei. Mas é foda. Eu vou embora. Te digo. Vou viajar, beber, aprender, fazer arte de verdade, sei lá. Qualquer coisa. Me demito’

‘Como assim? Você tem certeza? ’

‘Tenho’

‘São dez anos no lixo’

‘São dez anos de lixo’

‘Ok. Te admiro por isso. Sério. Boa sorte’ me disse estendendo sua mão.

Apertei sua mão e estava fora de lá. Um homem livre. Podia gritar, pular, dançar, comprar um kebab, qualquer coisa. Estava livre. Sem emprego também. Decidi ir para o bar da esquina. Era um bar novo, com o tema de arte. Era um bar metido a besta onde todos os moleques que frequentavam o museu iam. Era uma merda. Eu também.

Entrei no bar. Era quase tudo branco com alguns quadros nas paredes. Pedi uma cerveja. Bebi ela observando os quadros. Eram rabiscos. Rabiscos verdes, vermelhos, amarelos, roxos, etc. Todos juntos em um quadro branco. Provavelmente para mostrar a emoção do artista ou alguma coisa estúpida à la Pollock.

‘Quanto custa cada quadro desses? ’ Perguntei para o barman.

‘Ah. Não sei. Mas foi caro. O dono é um amante de arte muito rico. Coisa de bilhões. Esses rabiscos valem sua casa provavelmente’

‘Que coisa estúpida. Você não precisa do mínimo de talento para fazer algo desses. Crianças fazem isso e você não sai dando milhões para elas. Você fala ah legal João e deixa para lá’

‘É’

Fui embora do bar intrigado. Eu poderia ganhar milhões com isso. Fazer arte. Qualquer merda. Duchamp conseguiu e eu também podia. Seria fácil.

Cheguei em casa e sentei no sofá. Abri uma cerveja. Merda de vida. Merda de apartamento pequeno que só consegui comprar depois de anos de economia. Era mofado. A única coisa boa nele era a cerveja dentro da geladeira. Fui para meu quarto. Era ao lado da sala. Era menor do que qualquer quarto que já tinha visto. Era minúsculo. Tinha uma cama e uma cabeceira. Abri a gaveta da cabeceira. Vários desenhos. Sonhos perdidos. Eu era a estrela da escola de artes. Sempre desenhei bem. Era a criança que desenhava bem. Era o adolescente para quem pediam para desenhar seus retratos. Era o melhor aluno da aula de desenho. Mas nunca fui reconhecido no mercado. Nunca fui escolhido para uma exposição. Meus colegas que faziam retratos abstratos eram as estrelas do mercado. Eles eram tudo. Uns merdas.

Peguei um pedaço de papel e um lápis de cor. Desenhei meu quarto. Era libertador desenhar. Para mim, pelo menos. Eu sempre desenhei porque me tirava da realidade. Talvez do jeito que um viciado usa drogas ou Bukowski escrevia. Tinha que fazer tudo sozinho. Era como se fosse algo tão especial e tão pessoal que ninguém poderia me ver fazendo. Era como se eu estivesse me despindo. Ficava nervoso se alguém me visse desenhando. Mas agora estava sozinho. O retrato era extremamente realista. Eu o considerava bom pois mostrava técnica. Não era um rabisco qualquer. Ao terminar de desenhar este comecei outro. Mas esse ficou ruim. A perspectiva estava errada. Então fiz alguns riscos sobre o desenho para mostrar que ele estava ruim e comecei novamente.

A noite eu juntava meus desenhos e os mandava para galerias, como já vinha fazendo a 20 anos. Sempre foi um fracasso e não sabia por que eu continuava. Mas já que estava desenhando, eu os mandava. A madrugada veio e me deitei e pensei em como precisava de um emprego.

 

II

Eu fiquei uma semana procurando um emprego. Foram muitas entrevistas. Desde supermercados à escritórios. Um senhor formado em pintura e desenho não tinha muitas chances em empregos bons. Finalmente consegui um trabalho como professor de artes em uma escola de ensino médio. Foi o que veio e eu peguei, apesar de odiar adolescentes.
O primeiro dia foi horrível. Esses merdas desses adolescentes não sabem respeitar ninguém, ainda mais em uma aula tão inútil como artes. Não era inútil. O sistema a tornava inútil para eles. Eu dei uma aula sobre pintura. Todos eram ruins. Nenhum talento. Passavam tempo demais em seus celulares e computadores para serem bons em algo como artes.
Ao chegar em casa eu peguei a correspondência. Entrei no apartamento e abri uma cerveja. Folheei os papéis. Conta, conta, anúncio, conta, carta de aceitação, conta… Carta de aceitação? Que porra é essa? Olhei novamente. Abri a carta. Galeria nacional de Nova York.
“Aceitamos o seu desenho. Por favor entrar em contato”
FINALMENTE. FUI ACEITO. RECONHECERAM MINHA OBRA. Foi uma sensação incrível. Depois de uma década eles decidiram aceitar meu trabalho. Ia mostrar para eles como para ser artista não se precisava fazer rabiscos ou quadros minimalistas. Eu ia mostrar ao mundo da arte o que estava de errado com ele.

 

III

Entrei em contato com a galeria no dia seguinte. Me disseram que eu deveria passar lá e conversar com a curadora (Rebecca).

Era um prédio branco com vitrines muito grandes no centro de Manhattan. Estava impressionado. Achava que apenas uma galeria pequena aceitaria o meu trabalho, uma que percebesse o que estava de errado com esse mundo da arte. Mas aqui estava eu, em uma grande galeria com quadros tão absurdos quanto os do museu onde trabalhava. Toquei a companhia.

‘Olá. Sou Rebecca, a curadora. Pode entrar. Estávamos o esperando’

‘Oi. Tudo bem. Obrigado’. Respondi ansioso.

Era grande por dentro com chãos de madeira. Tinham pelo menos duas salas com vários quadros. Notei um em especial. Era um quadro todo vermelho com um ponto vermelho escuro no meio. O que era aquilo? Arte? Era simplesmente um quadro que qualquer um poderia fazer. Eu ia mostrar para esses imbecis o que era arte. Queria só ver qual dos meus trabalhos foi escolhido. Foi meu autorretrato? Ou o do meu quarto?

‘Bom. Gostamos muito de seu trabalho. ’ Me disse Rebecca ao se sentar.

‘Ah. Muito obrigado’. Respondi.

‘Nós gostamos muito desse desenho aqui’

Ela pegou um desenho de sua gaveta. Reconheci o papel. Mas quando ela o virou para mim não pude acreditar. Devia ser algum tipo de erro. Não podia ser verdade. Ao virar o papel, eu vi um rabisco sobre um desenho de um quarto. Devia ter mandado por engano o desenho que rabisquei por cima.
‘ Ele mostra muito bem como a realidade é destorcida pelo psicológico. É realmente uma obra de artes. Mas não entendemos porque não mandou mais trabalhos assim. ’

‘Bom. Porque esse não é o tipo de arte que eu faço normalmente. Era um tipo de experimentação. ’

‘Bom. Se nos mandar mais desses, podemos montar uma exposição’

Pensei nos meus empregos horríveis. Em tudo que já passei para ganhar uma grana.

‘E quanto eu ganharia sobre o que for vendido?’

‘30%’

‘E quanto seria um quadro desses? ’

‘Ainda temos que fazer as avaliações, mas em torno de 20 mil’

MEU DEUS. QUANTO DINHEIRO. Isso me consumiu. Foda-se a arte. Vou ganhar dinheiro com rabiscos. Entendi porque todos esses artistas fazem esse tipo de arte. Entendia tudo.

‘Ótimo, então. Eu posso mandar mais desses e montamos uma exposição? ’

‘Pode ser, sim. ’

‘Ok. Obrigado. Entrarei em contato com vocês’

Rebecca me levou até a porta.

Ao chegar em casa, eu me sentei na mesa e desenhei vários retratos. De pessoas famosas e conhecidos. Apenas rabiscava-os depois de termina-los. Não entendia o que estava fazendo, mas era isso que queriam.

 

IV

Depois de dois dias fazendo os retratos e desenhos e depois os rabiscando como uma criança que achou os desenhos do pai, eu os mandei para a galeria.

Rebecca me telefonou no dia seguinte que recebeu as obras e disse que as adorou e que poderíamos fazer a exposição com 50 obras. Eu aceitei.

Foi um mês para eu desenhar mais algumas e para montar a exposição na galeria. Foi muito fácil de organizar. Rebecca disse que iria fazer uma sequência de algum modo lógica das obras. Iriam de pessoas até as casas e paisagens. Seria uma distorção da realidade gradativa ou qualquer merda que inventam sobre arte esses dias.

O grande dia havia chego. Eu iria ter minha exposição na galeria e iriam RECEBER por cada quadro comprado. Algum babaca iria comprar alguma obra.

Eram nove horas da noite e estava tudo muito chique. Eu estava com a minha melhor roupa. Tinha champanhe, vinho, queijos, aperitivos e as pessoas mais influentes do mundo da arte.

‘Muito interessante sua obra, uma clara referência ao caos do mundo’

‘Sua obra mostra como a estética não importa na arte’

Bla, bla, bla. Como esses malucos falam essas coisas? Como que alguém poderia achar que algo tão idiota pode ser arte? Eu só queria meu dinheiro…

‘Muito obrigado. Eu tentei mostrar como a arte pode ser muitas coisas além de um Michelangelo, por exemplo’ (merda)

‘Sim, sim. Eu mostro como as aparências enganam e como o interior pode ser muito bonito’ (muita merda).

A noite se resumiu a artistas e críticos pretenciosos me bajulando e falando que gostaram de uma farsa. Não passava de uma farsa. Algo que eu havia feito em alguns dias sem pensar em nada. E eles caíram nessa. Era ridículo e intrigante.

A noite terminou e fui para casa. Eu havia faturados mais de 20 mil dólares. Era absurdo. Eu estava feito. Fiquei olhando para meus desenhos antigos. Os bons. Mas comecei a refletir, pensar, que havia algo diferente nesses dois tipos de desenho. Havia algo diferente nascendo em mim.

 

V

‘Alô’

‘Oi’

‘Oi’

‘Você tem outras obras? Algo diferente? ’

‘Hm. Ainda não. Mas estou no processo’

‘Ok. Então quando terminar nos mande elas’

‘Ok’

‘Tchau’

‘Tchau’

Eu não estava no processo. Já tinha meu dinheiro. Mas eu queria continuar, não sabia por que. Era um sentimento que eu tinha, vinha de dentro de mim e estava aumentando.

Sentei na mesa do escritório e abri uma cerveja. Comecei a rabiscar o papel. Eu estava me sentindo libertado. Estavas sentindo meus sentimentos sendo passados para o papel. Liguei a música. Era Beethoven. Eu só escutava música clássica. Era algo que me ajudava a pensar, refletir. Achava o resto muito barulhento. Bloqueava o pensamento. Então, pensando e realmente sentindo raiva, felicidade, amor, ódio…. Passei tudo para o papel. Não eram rabiscos. Eram meus sentimentos mais profundos sendo passados para o papel. Eu estava começando a entender o que falavam de arte moderna. Mas ainda era muito estranho para mim. O que era aquilo? Eu não estava demonstrando nenhuma habilidade. Não demonstrava nada. Eram apenas rabiscos para quem via. Talvez para o artista fosse mais que isso, mas talvez não passasse de rabiscos.

Com tudo isso passando pela minha cabeça, terminei minha obra. Linhas passando por todos os lados, de várias cores. Eu mostrava a confusão que passava pela minha cabeça.

No outro dia acordei mal. Com um sentimento de que trapaceei a galeria com minha falsa arte. Agora que começava a compreender o que era a arte contemporânea, eu me sentia mal. Talvez eu devesse devolver o dinheiro? Mas era muito dinheiro, e pior, dinheiro do qual eu precisava.

O telefone tocou.

‘Alô’

‘Oi.

‘Aqui é da revista Arts. Queríamos fazer uma matéria com o senhor. ’

‘Ah sim. Pode ser’

‘Então podemos passar na sua casa amanhã pela manhã?’

‘Podem sim’

‘Ok’

‘Tchau’

Pela manhã eles chegaram. Fizeram várias perguntas sobre arte, obviamente. Mas a mais importante foi o que a arte moderna tem de diferente de outros movimentos para você? Essa pergunta me pegou de surpresa. Eu senti uma avalanche dentro de mim. Senti um tornado de sentimentos. Vergonha.
‘Bom. Para mim, a arte moderna é mais uma expressão do que uma impressão. Ela demanda do autor um pensamento um pouco mais diferenciado e profundo sobre tudo que ele vai fazer na obra. Demanda conhecimento técnico e histórico. Mais importante, ela demanda a reflexão do espectador. Ou seja, ela faz com que quem está vendo realmente pense sobre arte e sobre o que a obra propõe. Isso é algo inédito no mundo da arte, na minha opinião’

Foi uma resposta sincera. Eu entendia arte agora. Quando você rejeita um tipo de arte, você provavelmente não a entende. Eu não entendia arte, era ignorante. Mas agora, eu entendo. Agora eu sou um artista. Agora posso dizer isso. Sou um velho. Demorei para aprender isso. Vivendo e aprendendo. Agora posso dizer, SOU UM ARTISTA.

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