Lá Atrás. Noutro Tempo.
written by: J. Maciel Costa
Estava a abeirar os 8 anos de idade. Era os primeiros de Março; já estiava e a temperatura era razoavelmente amiga.
O bisavô sempre reunia as gentes das campanhas e, parecendo que oferecia um fim de tarde animado, tratava de saber como corriam as coisas. O pai sobrevivia ao filho: o avô já tinha falecido.
Nós: pai, mãe e filhos também éramos chamados à casa grande.
“Casa última” azedava a mãe.
Ao que sei, o bisavô, depois de enviuvar tratou de arranjar casa na riviera francesa e, entre casinos e sevilhanas, dissipou baldios, cultivos, casario e tudo o mais; hoje encontra-se por cá muita descendência francesa.
O avô, havia muito, tinha sido afastado de qualquer posse, co-governo ou decisão; cometeu a heresia de casar com quem quis: uma senhora que, dizia-lhe o pai “não traz nome nem acrescento, de pele círia, cabelo descolorido e olhos cor de mar”.
Nós éramos uns semi proscritos e estávamos recolhidos na cidade. Mas o senhor gostava dos bisnetos e lá nos suportava.
Adjacente à casa tem uma enorme eira com dependências e telheiros. Aí se reuniam as pessoas.
Faziam um assado gigantesco e todos eram servidos do que beber, comer: para corpo e para espírito.
Vinha rancho animar, romeiros pr’orar. Também lá estava D. António já não me lembro de quê – Silveira, parece-me – eminência por lá nascido com algum do seu séquito de batina. “Nada de republicanos”, afirmava o bisavô “gente inescrupulosa…” e não sei o quê nem sei que mais.
“azeite?” perguntava.
“Ano de geada senhor e….. e…”
Zás- pingalada no cano da bota.
“e de fruta como vai ser?..”
nova resposta, novo Zás.
Ora nesse ano, que foi o último, reparei numa menina, filha de alguém de trabalho a julgar pela posição que na eira tomava. E ela pousava o olhar doce mas algo triste, meigo e cativante em mim. Foi estranho. Estava a gostar. Foi assim toda a tarde.
Senti ternura.
Então o sol esmoreceu e deitou-se para morrer, enquanto a escuma da sombra se imiscuía no terreiro.
Lembro-me do marejar distante, o barulho do mar na areia (havia uma enseada ao fundo da ligeira colina onde o bisavô mastreava o saveiro), do adejar dos cagarros – ave marítima que por lá abundava -; lembro-me do inocente olhar com que ela buscava o meu; lembro-me de tremular: sem o sol benfazejo e envolvente, insinuava-se o vespertino fresco primaveril. Ou seria por outra razão da qual não tinha anterior conhecimento?
Tempo de erguer e incinerar a pira de troncos. Vistoso braseiro tomava a vista e dava o conforto. Tempo dos cantos, das alegrias, das risadas do mulherio.
Retiravam-se os Dons. Cada qual ao seu paço. Don António, que havia passado bom tempo a escolher qual o vinho para as homilías, de tanto provar ao copo cheio, de passo trocado, arrimado pelos dois lados por clérigos pressurosos; outros que se davam ares mas de nada tinham ares, em brakes de parelha; a avó e os pais numa singela carriole de duas rodas.
Sob o cuidado e olhar da senhora Auxília, aos rapazes era permitido ficar. Iríamos passar por “processo rápido de aprender a brejeirice” e depois dormiríamos por essa noite na Casa grande. No outro dia o bom e corcovado senhor Álvaro da estrebaria devolvia-nos à procedência.
Lembro-me da concha no ouvido replicando o som do mar. Lembro um vestido azul turquesa envolvendo a sua tristeza.
Fiquei sozinho olhando o sol descer por entre as ruínas do Capelo; o último menino no dia em que o sol estremeceu.
Lembro o cheiro a pau queimado, de lenha incandescente. O largo abarrotado, as estradas sem gente.
Sentei-me num banco corrido e olhei o seu olhar. Ela, diligente, tomou lugar um palmo longe de mim.
Um sensato pode enternecer-se como um santo, mas não como um tolo. E eu … tolo.
Não antes disto.
Não tomei a alameda, antes virei pela vereda que chamava ao meu destino, bordejada por hortênsias e camélias, aqui e além umas azáleas. Para além destes limitadores, à direita e para a frente imperavam árvores de porte médio e grande: o mogno, louro e o sanguinho de mistura com urze e queiró; pela esquerda arbustos de fruto silvestre: amora e mirtilos, frambroesas e araçás (que afinal era uma pequena árvore) e, aqueles que me guiavam os passos, groselhas.
Já me sorria a antever os doridos ralhos da senhora Auxília ao ver-me de mãos e boca tintas; roupas salpicadas. “Ai o menino nesses jeitos… que mais parece um maltrapilho… que não diria a senhora sua avó se o visse nesse preparo…” Bondosa senhora a Auxília.
Sabia que em silencioso andar me seguia a dócil criatura. Pois não havia eu sussurrado “Vou-me às groselhas”? E dizendo isto, lancei mãos ao banco como para me impulsionar o levantar. No acto, aflorei brevemente a sua mão e senti todas as rotações da Terra. Inebriado pela sensação, cabeça feita girândola, tropecei em mim e quase caí.
Intemporal momento esse. Agora sabe-me a eternidade.
Não fosse o algum luar que as nuvens esparsas permitiam e já me teria trocado o rumo. Segui brando e cauteloso. Para quedas já bastava o embaraço anterior. Mantinha os sentidos alerta. Escutava o leve caminhar que me imitava a rota. “Vens por aí, bem te ‘oiço’”.
A um momento passei para lá da borda e fui-me ao fruto.
Permitido este, proibido o outro que suspeitava haver.
A lua em crescente, deitou-se no seu colo; esvoaçante, a minha alma embrulhou-se no seu seio. Esboroou-se no tempo, dias corridos, quase olvidados.
Esteja onde estiver, de certeza que se fez mulher e eu – agora alquebrado, pelo tempo estragado, pelos sois gretado, cabelo polvilhado – nesse dia tive um instante de céu.
Um sensato pode enternecer-se como um santo, mas não como um tolo. E eu … tolo.
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